Como é a vida antes e depois da cadeia?
- Nua
- 9 de nov. de 2024
- 4 min de leitura
Encarceramento em massa, luta por direitos básicos e oportunidades na voz de quem passou pelo sistema prisional.

“A cadeia é uma rua com grade e a rua é uma cadeia sem grade. Você escolhe onde quer morar”.
Essa era frase que uma das guardas na Casa de Custódia de Magé gritava pelos corredores quando Bárbara Barbosa chegou por lá. E Bárbara concorda. Embora reconheça a precariedade, falta de infraestrutura e desumanização comuns à vida forçada "em coletivo", descreve o que viveu na cadeia como "uma versão mais intensa do que já via na sociedade".
Na cadeia, assim como nas ruas, o racismo estrutural, o machismo e a violência econômica faziam (e ainda fazem) carreira, quando as mulheres aprisionadas eram abandonadas após terem sido capturadas de seus lares. Bárbara relembra que a família de periferia, de comunidade, é basicamente matriarcal: a prisão daquelas mulheres afetava imensamente toda a dinâmica familiar. "Eu estava vivendo com chefes de família", diz ela. "Não tinham muito a oferecer, mas ofereciam o pouco que tinham".
Muito além de #OITNB: mitos, desumanização e auto-organização
A realidade intramuros, tal como apresentada por Bárbara, é bem distante da ficção vista em séries famosas que tematizam o universo prisional, como Orange is the New Black ou Prison Break. Por mais que se tente romantizar as relações entre mulheres privadas de liberdade (glamourizando tanto a troca de afetos quanto a solidão), seus relatos enfatizam cenas de apoio mútuo.
"Algumas meninas tinham poucas visitas (uma vez a cada dois meses ou menos) e, quando o dia chegava, se recusavam a descer. “Pô, mas tua família vem de longe, vem de outro estado!”, o pessoal insistia, mas só quando alguém chegava no particular, assim, com todo o carinho, é que ouvia: “É porque eu não tenho absorvente. Vou ficar lá no meio da minha família toda suja de sangue?"
Isso porque remédios, absorventes e outros materiais de uso pessoal, que o Estado tem como dever oferecer, eram insuficientes, regulados ou desviados para venda imprópria, mesmo quando havia doações. "Vi uma menina descer à custódia, o local onde ficam as doações de material higiênico, e voltar com um pacote de oito absorventes para três dias." E a família, do lado de fora, nem sempre consegue ajudar.
"... uma mãe vinda da comunidade que, muitas vezes, não sabe ler nem escrever, [...] pode acabar sendo enganada por falsos advogados ou mesmo por agentes prisionais. Pode ser cobrada para colocar uma bolsa de roupa para dentro, vendendo seus pertences no desespero de ajudar a filha ou filho detidos."
Foi por conta de incidentes como esse que Bárbara decidiu se somar à Eu Sou Eu - A Ferrugem, uma organização construída por pessoas que se movimentavam dentro da cadeia enquanto cumpriam pena, com o objetivo de consolidar os direitos previstos pela Lei de Execuções Penais (LEP) e não efetivados no sistema carcerário. Foi apresentada à organização quando estava terminando sua graduação e buscava oportunidades para construir uma monografia sobre “os meandros da cadeia, não apenas o que retratam na grande mídia aqui, fora dos muros”.
Enferrujando a máquina racista e classista do sistema prisional
Hoje, Bárbara Barbosa é jornalista, palestrante, articuladora política do CRADC/ICPN e assessora de comunicação da Eu Sou Eu - A Ferrugem, organização que já foi reconhecida pelo Fundo Brasil. Lá, conheceu o advogado João Luís da Silva e o historiador Cristiano Oliveira, dois dos primeiros integrantes da Eu Sou Eu desde sua articulação intramuros.
"Como ex-presidiários que cursaram a universidade e estão na luta, acreditamos que nós, da Eu Sou Eu, somos a 'ferrugem'", diz João.
Além do apoio jurídico, atendimento a pessoas em privação de liberdade, a Eu Sou Eu busca acolher egressos do cárcere para, nas palavras de João, "sufocar o sistema a partir do fluxo de conhecimento que compartilhamos". Assim, surgiu o Educação que Liberta, um projeto de aulas online que busca facilitar o retorno aos estudos, seja para concluir o ensino médio com a prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) ou para ingressar em uma universidade via Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a partir de metodologias antirracistas e antipunitivistas. O projeto foi idealizado por Cristiano e por Joyce Gravano.
"Queremos desconstruir a imagem de que a prisão resolve tudo, entregando um ser 'novo em folha' depois de ter passado pelas abordagens de uma equivocada 'pedagogia da ressocialização', fazendo teatro ou qualquer outro curso encontrado por lá", nos conta Cristiano.
A verdade - pouco enfatizada, mas bem conhecida por quem passa pelo sistema prisional - é que o retorno à sociedade apresenta inúmeros desafios. Em especial, o de enfrentar uma "sentença social perpétua", a identidade jurídica de ex-presidiário que os acompanha anos depois do cumprimento da pena. Por isso, perdem-se oportunidades, enquanto a sociedade, tão carente de recursos humanos, perde em talento, provando o quão frágil é o sistema que ela mesma propõe.
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